Vamos construir uma máquina de calcular que escreve expressões compostas pelos
seguintes símbolos neg P N ( ).
Por expressão entenda-se uma lista não vazia composta por estes cinco
símbolos. Uma expressão X é "printável"1 se a máquina a conseguir escrever
("printar"). Admitimos que a máquina está programada de a modo a escrever
expressões que pode imprimir, i.e., gasta todo o seu tempo a imprimir
expressões.
Chama-se norma de uma expressão X à expressão composta X(X); por exemplo, a
norma de P neg é P neg (P neg). Uma frase válida tem uma das seguintes formas:
P(X)P N(X)neg P(X)neg P N(X)
Se associarmos, informalmente, a três dos símbolos anteriores um
significado podemos ler uma qualquer frase válida. Assim associamos os seguintes
significados a P, N e neg:
P— "escrito pela máquina"N— "a norma de"neg— "não é"
Com esta interpretação podemos dizer que P(X) é uma frase verdadeira se, e só
se, X é printável1; do mesmo modo PN(X) é verdadeira se, e só se, a norma de X
poder ser escrita, neg P (X) é verdadeira sse2 X não poder ser escrita e neg P
N(X) é verdadeira se a norma de X não poder ser escrita. Assim as definições
anteriores permitem-nos falar em português, e com rigor, sobre o que afirmam
cada uma das frases escritas pela máquina e o que significa uma expressão
verdadeira. Estas são de facto, auto-afirmações, efectuadas pela máquina, são
frases que nos dizem algo sobre a máquina que as escreve. A máquina durante o
seu funcionamento descreve o seu próprio funcionamento, semelhante a um
organismo consciente.
Assim concluímos que a máquina está bem definida, i.e., funciona bem, e que
todas as frases que por ela são escritas são expressões verdadeiras. Por
exemplo, se a máquina escrever P(X), isto significa que X pode ser realmente
escrito (X será escrito mais tarde ou mais cedo); da mesma forma se num instante
posterior a máquina escrever P N(X) então X(X) também aparecerá mais
tarde. Admitamos agora que X pode ser escrito pela máquina, será que podemos
concluir que P(X) também o será? Se X pode ser escrito pela máquina então a
frase P(X) é verdadeira, mas não sabemos, de facto, se P(X) pode ser escrito
pela máquina, ou seja, se P(P(X)) é verdadeira.
Será possível a máquina escrever todas as afirmações verdadeira que falam sobre ela?
A resposta a esta pergunta é, um surpreendentemente, não! Para podermos verificar isso temos que encontrar uma frase que seja verdadeira, i.e., que afirme algo verdadeiro sobre a máquina, e que a máquina não consiga escrever. Basta construir uma frase, uma expressão, que afirme a sua não "printabilidade".
Uma candidata seria: Esta frase "esta frase não pode ser escrita" não pode ser
escrita. Ou seja neg P N (neg P N), que afirma que a norma de neg P N não pode
ser escrita. Por definição de expressão verdadeira, a frase anterior é
verdadeira se a norma de neg P N não pode ser escrita, mas a norma de neg P N é
exactamente a frase neg P N (neg P N)!
Algumas frases apressadas
- "Dizer sempre a verdade não é a verdade toda"
- "Há mais verdade para além de toda a verdade"
- "Há verdades que desconhecemos"
- "Toda a verdade não está disponível"
- (...)
Ref: Smullyan, R M (2001) "Gödel's Incompleteness Theorems" in Goble, Lou, ed., The Blackwell Guide to Philosophical Logic. Blackwell
1. Vou usar "printável" para dizer o mesmo que "pode ser escrita".
2. sse = se, e só se
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Last updated: 23-01-2025 [00:04]
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Charters, T., "A verdade, nada mais do que a verdade": https://nexp.pt/x-godel.html (23-01-2025 [00:04])
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