Pode uma máquina ter dores de dentes?

Ludwig Wittgenstein: notas sobre o livro azul

A leitura do GEB fez disparar algumas leituras apressadas. A primeira corresponde ao "O Livro Azul" de Wittgenstein editado pela Edições 70 (comprado por mim em 1993). A primeira nota corresponde à discussão da localização da ocorrência de um pensamento, muito no espírito do livro de Hofstadter intitulado "I am a Strange Loop".

Podemos pensar que a localização da ocorrência de um pensamento pode corresponder a uma qualquer coisa escrita num papel ou ainda, quando falamos, à nossa boca que fala. No entanto o sentido que tem a frase anterior é completamente alterado na utilização da expressão "localização do pensamento". Quais são as razões que nos levam a considerar a cabeça como a sede do pensamento?

A principal razão da nossa forte inclinação para falar da cabeça como a sede dos nossos pensamentos é o facto de admitirmos a existência das palavras "pensamento" e "pensar" como actividades análogas às actividade corporais de "falar" e "escrever". Como estas palavras têm, à primeira vista, utilizações análogas, tendemos a tentar interpretá-las de uma maneira análoga. Um pensamento é diferente de uma frase, um mesmo pensamento pode ser expresso em português e em inglês em duas frases completamente diferentes, e como as frases parecem estar em algum lugar, procuramos um lugar para o pensamento.

O pensamento é alguma coisa, a palavra "pensamento" tem o seu uso mas de um tipo completamente diferente da palavra "frase".

Se dissermos: "o pensamento ocorre nas nossas cabeças" qual é o sentido desta expressão?1 Podemos dizer que corresponde a certos processos fisiológicos de uma tal forma que se conhecermos a correspondência poderemos, observando esses processos, descobrir os pensamentos.

Consideremos a seguinte experiência mental, tal como Galileu desenhou a experiência da queda dos graves. A experiência consiste em observar o cérebro de um indivíduo enquanto este pensa. Para evitar objecções relativamente óbvias vamos supor que o indivíduo é simultaneamente o experimentador que olha para o seu próprio cérebro recorrendo para esse efeito de um espelho (metaforicamente falando, claro).

Neste caso surge naturalmente a seguinte dúvida: o indivíduo-experimentador observará uma ou duas coisas?

O indivíduo-experimentador observará uma mistura de duas coisas, dois fenómenos. Um deles a que possivelmente podemos chamar de pensamento, pode consistir numa série de imagens, sensações, ou, por outro lado, numa série de experiências visuais, tácteis e musculares variadas, que por ele são sentidas quando escreve ou profere uma frase. A outra experiência corresponde à observação do funcionamento do seu cérebro. Ambos os fenómenos poderiam ser correctamente chamados "expressões do pensamento".

Uma objecção que se pode levantar à afirmação de que o pensamento é algo de semelhante a uma actividade da mão, corresponde à afirmação de que o pensamento faz parte da nossa "experiência privada". Não é material, mas um facto da nossa consciência privada. Esta objecção é expressa na questão: "pode um computador pensar?" Ou de uma maneira análoga: "pode uma computador ter dores de dentes?" Sentimos-nos tentados a responder: "um computador não pode ter uma dor de dentes". Que uso fizemos da palavra "pode"? Pergunto: "era nossa intenção dizermos que toda a nossa experiência passada mostra que um computador nunca teve dor de dentes?"

1. Ok, é justo um pequeno sorriso :)

Palavras chave/keywords: Wittgenstein, livro azul

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Última actualização/Last updated: 10-10-2022 [14:26]


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