Do vírus ao vira

Surgem com uma naturalidade comercial nestes últimos dias artigos de opinião sobre as consequências do vírus 2019-nCoV, a última grande novidade de epidemia global, a "primeira" realmente global e diferente por ser também simultaneamente uma infopedemia (Novel Coronavirus 2019-nCoV, Organização Mundial de Saúde).

Temos de tudo: sobre o grande medo das prateleiras vazias nos supermercados, o aumento do preço das máscaras cuja eficácia é reduzida no controlo e propagação da doença, o controlo bio-político de cidadãos e a sua relação, natural?, com regimes autoritários, ou o controlo digital com notícias de implementação de um sistema pan-Europeu de vídeo-vigilância global, que daria muitíssimo jeito agora diga-se, ou mais suavemente da explicitação da deficiência do nosso modo de vida capitalista e ao estado a que isto tudo chegou à escala planetária.

No fundo temos um cenário fértil onde medos primitivos e preconceitos latentes se podem desenvolver livremente e isso vende: jornais, tempo de televisão e clicks nas redes sociais.

Visto assim até parece que o vírus e a sua propagação se cola bem a ideologias autoritárias e repressivas e que, como o desespero costuma impor, não há alternativa. Ceder para controlar a propagação, ceder ao medo e à desinformação.

Se é verdade que todas as desgraças enunciadas acima podem ser vistas como consequência da pandemia também é verdade que não correspondem a todas as consequências que podemos tirar dessa pandemia, e que faltam certamente todos os valores humanos a que normalmente invocamos ou recorremos para vivermos durante um periódico difícil das nossas vidas. Nem tudo são desgraças. Ainda nos temos uns aos outros. Mas não deixemos no entanto de nos perguntar: a quem serve esta a infopedemia?, quem beneficia financeiramente com ela? quem é que por ela lucra?

Podemos nós também, mas de outra forma, "lucrar" em benefício próprio e coletivo com ela? Colá-la a um modo libertário de resolução desta disrupção global?

Acho que sim e temos exemplos. Bons exemplos em como a ajuda mútua é um fator de evolução: voluntários que explicam e fazem máscaras para proteção, ou a utilização das redes sociais como plataforma de catarse planetária onde são colocados relatos pessoais, que usualmente não aparecem nos meios de comunicação social main stream, permitindo à escala global seguirmos e, apesar de todo o pânico e toxicidade geral biológica e informativa, uma perspetiva em primeira mão humana e cheia de esperança.

E pode mesmo ser a coisa mais altruísta que podemos fazer em prol da comunidade em que vivemos, preparamos-nos em conjunto para o combate à propagação global do vírus numa resposta contra a disrupção global.

E por vezes isto tem que ficar escrito antes destas coisas se tornarem verdadeiras e a desgraça nos distraia e nos vire.

Criado/Created: 04-03-2020 [15:09]

Última actualização/Last updated: 14-02-2024 [10:25]


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(c) Tiago Charters de Azevedo