A história da Cinderela

... não é, ao contrário da ideia geral, uma história original da Disney. É uma história geral que todos conhecemos e que é comum e conhecida em muitas partes do mundo.

Uma história popular de repressão sobre uma mulher e que tem no fim uma recompensa "triunfante". Vonnegut descreveria a história como uma história de que toda gente gosta e reconhece.

Essa história é preocupantemente apresentada em duas partes. A primeira onde uma mulher sofre uma diária repressão constante psicológica e física, obrigada a trabalhar sem remuneração, enclausurada na sua própria casa, obrigada a dedicar-se a tarefas domésticas, diríamos hoje trabalho reprodutivo, sem tempo livre para se divertir e no fundo sem tempo para viver. A segunda em jeito de recompensa cósmica é salva da sua vida miserável por um homem (deixemos assim pois o que leva a este final também trágico não é relevante para o resto).

Em 2009 Tim Jackson no livro com título "Prosperity without growth: economics for a finite planet" usava esta história popular para explicar a designação de um certo tipo de economia: a Economia Cinderela.

Dar o nome "Economia Cinderela" a uma "economia" é no mínimo bizarro. Que economia será então esta?

O termo Economia Cinderela é usado para descrever uma economia desprezada que assenta na margem da nossa sociedade de consumo. Uma economia que dá aos produtores e consumidores, e aqueles que nela participam, uma grande sensação de bem-estar e realização pessoal. Uma sensação muito maior do que aquela que e.g. se poderia obter baseada numa economia consumista e materialista de supermercado.

Uma economia que repousa em actividades com baixas taxas de emissão de carbono e que emprega pessoas que contribuem de uma maneira com significado para o desenvolvimento pessoal e humano. Uma actividade essencialmente humana i.e. de contacto humano.

Estas actividades existem e são comuns e raramente são reconhecidas como actividades económicas num sentido formal do termo. Empregam muitas vezes pessoas em regime de part-time ou de uma forma voluntária e são muitas vezes de actividade física intensiva como por exemplo: tomar conta de crianças, de idosos, cozinhar, limpar, etc, ... Actividades importantes e fundamentais para a vida em comunidade sem as quais muito provavelmente o nosso modo de vida não se manteria caso desaparecem.

A parcela contabilística para o BIP é "quase nula" ou nem sequer é contabilizada.

Nesta economia os produtores são maioritariamente mulheres. Consumidores? O resto da sociedade.

Até do ponto de vista convencional a economia Cinderela tem uma formulação problemática e.g. a margem para o aumento de produtividade é quase nula e a robotização não lhe serve para nada. Pois aqui é a interacção humana que é a condição de existência dela, a redução de trabalho neste tipo de actividades humanas não faz nenhum sentido. É assim fácil de perceber porque é que foi deixada à margem da nossa sociedade de consumo e que não tem nela lugar, porque não permite aumentos de produtividade, numa economia que privilegia o crescimento.

Mas retomo a história da Cinderela. A utilização do termo economia Cinderela capta muito bem então a mensagem da história popular. A de que há alguns membros na nossa sociedade que têm este modo de vida e que são maioritariamente mulheres.

Mas a história ficcionada (será assim tão ficção?) também acerta noutra coisa. Mostra no final a personagem que na realidade domina a sociedade em que a mulher vive. Um príncipe, um homem.

E é nesta economia Cinderela que muitas vezes identificamos a versão mais selvagem do capitalismo. Aquele que explora a desigualdade salarial entre homens e mulheres, aquele que obriga as mulheres a serem Cinderelas, a cuidar dos filhos sozinhas, das tarefas domésticas, dos pais idosos e de as obrigar a viver uma vida que não desejam (alguns dizem que é por amor, veja-se...). Não podem escolher.

As estatísticas estão disponíveis não as vou repetir.

São também elas as vítimas de abuso e de violência e na quase totalidade dos casos pelo príncipe encantado da história popular.

Hoje o dia foi de manifestações e protestos pela libertação e pelo reconhecimento do fim desta economia Cinderela.

Que o futuro seja feminista ou não será.

Criado/Created: 08-03-2019 [22:26]

Última actualização/Last updated: 14-02-2024 [10:25]


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(c) Tiago Charters de Azevedo